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domingo, maio 30, 2010

Isto resolve a questão - leis retroactivas

Da ilegitimidade dos impostos retroactivos.

Está na Constituição da República portuguesa e reza assim:
Artigo 103.º
(Sistema fiscal)
1. O sistema fiscal visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza.
2. Os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes.
3. Ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroactiva ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei.

Um curto esclarecimento para os meus leitores que não são juristas.
Uma lei retroactiva é aquela que visa reger relações jurídicas existentes antes de ela entrar em vigor.
As leis em geral regem só para o futuro, mas há situações extremas em que é necessário que uma lei regule relações jurídicas constituídas antes de essa lei aparecer.
Considera-se que a não retroactividade das leis é uma garantia dos cidadãos num Estado de Direito – citando um clássico, diria que no pensamento constitucional contemporâneo enraizou-se a ideia de que um Estado de Direito é sempre também um Estado de segurança jurídica, como defende o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, que já sufragou a ideia de que a segurança jurídica constitui um dos elementos nucleares do princípio do Estado de Direito, ficando os particulares protegidos contra leis retroactivas que afectem direitos adquiridos, de modo a evitar que seja frustrada a sua confiança na ordem jurídica.
Se vivemos num Estado de Direito, então qualquer lei retroactiva terá de ter uma explicação muitíssimo evidente, por forma a congregar à sua volta a opinião favorável de uma significativa maioria de cidadãos.
Segundo percebi, o governo pretende que uma lei fiscal que agravou o regime fiscal dos cidadãos em geral, aprovada em Maio/2010, produza efeitos retroactivos a Janeiro/2010.
Há estudos de opinião que revelam com clareza que há uma maioria de cidadãos que discordam dessa retroactividade.
Por isso, e tendo em conta o artº 103º, bº 3, da CRP, tal lei é ilegítima porque é claramente inconstitucional.
Mas isso não significa que não possam ser aprovadas leis claras não-retroactivas, que agravem o regime fiscal por forma a obter para o erário público a quantia necessária no final do ano, civil ou fiscal.
Para isso é preciso saber legislar, ter um competentíssimo apoio jurídico e ter acesso a equipas de gente muito experiente que é capaz de desenhar uma lei eficaz, bem feita, constitucional.
Implica muita reflexão à luz de um razoável saber, tudo bem misturado com bom senso e boa fé.
Infelizmente o actual legislador não dispõe de gente com esta qualidade.
Com os resultados conhecidos.

Adenda: sejamos honestos, mesmo relativamente àqueles que fazem da desonestidade uma prática regular.
Ouvi hoje/ontem, 1-6-2010, na TV, que parece que os aumentos de impostos são apenas referentes aos meses seguintes à aprovação da lei; se for assim, a lei não é inconstitucional.
É “apenas” um violento golpe nas finanças de quem menos tem e uma benesse descabida para aqueles que nadam em conforto económico.
Estes homens do governo são uns "socialistas" singulares: socializam a pobreza e deixam os ricos em paz, com o argumento extraordinário de que não convém chateá-los.
Adenda 2 - afinal parece que o aumento de impostos é mesmo retroactivo nalguns casos, como a taxação das mais valias que segundo o Ministro das Finanças abrange todo o ano de 2010; bolas, que estes maraus não param de se desdizer e de jurar a pés juntos que é verdade aquilo que ontem juravam que é mentira; os tipos andam loucos ou sou eu que estou a ficar apanhado do clima ?

6 comentários:

António Conceição disse...

Com os resultados conhecidos - diz bem.

Blimunda disse...

E a tradicional dormência popular.

Não me diga o amigo 100 que é também jurisconsulto.

100anos disse...

Tem dias que sou, outros que nem por isso, Blimunda.

jama disse...

Tendo sido "provocado", no decurso de uma conferência, a pronunciar-se sobre esta questão da possível inconstitucionalidade de normas que criassem impostos retroactivos, um Ilustre Conselheiro lá foi dizendo que não há na Constituição nenhum princípio mais forte do que o do "tem de ser", com o que concordo inteiramente. Na verdade, só numa economia excedentária é que podem existir certos direitos (v.g., os direitos sociais).
Mas, como já disse no blog do Funes, e sem me reportar a qualquer caso concreto, considero que a questão é muito mais política do que jurídica: não se pode compreender que quem defende a derrogação de um princípio tributário fundamental, como o é o da não retroactividade dos impostos (que já estava consagrado na CRP muito antes da Revisão de 97, sendo, aliás, como muitos têm defendido, ínsito à própria ideia de estado de direito enquanto segurança jurídica), para salvaguarda de valores superiores, seja quem fez com que esses valores superiores tivessem sido ameaçados a ponto de, para os salvaguardar, terem de ser sacrificados outros direitos. Esta é que é a verdadeira questão, e é nela que devemos centrar os nossos pensamentos.

100anos disse...

Caro Jama,
A Constituição é um conjunto de leis fundamentais que umas centenas de legisladores imaginaram depois de andarem a matar a cabeça anos seguidos.
O “tem que ser” não é nada, é uma fórmula voluntarista normalmente usada por quem não tem argumentos ou, pior, por quem nem se quer dar ao trabalho de construir uma argumentação convincente, ao qual são muito dados certos políticos cuja política é basicamente o posso-quero-e-mando e tu, cidadão, vai-te f... que eu não tenho pachorra para te aturar.
Não me fiz compreender, no que digo acima.
O que eu quero dizer é que se o governo quiser ir buscar 100 aos impostos e estamos em Maio/Junho, o que há a fazer é dividir 100 pelos meses que faltam até ao fim do ano, na base do 100/7, achar a resultante e comunicar aos cidadãos “meus senhores, tenho muita pena mas têm que pagar isto senão o Estado vai à falência”.
Todavia, por razões de puro calculismo político o governo divide 100 pelos 12 meses do ano e doura a pílula saindo-se com uma lei claramente inconstitucional.
No primeiro exemplo eles foram buscar 100 de uma forma honesta.
No segundo exemplo eles foram buscar os mesmos 100 deitando mão a uma lei inconstitucional.
Ora se nós, cidadãos trabalhadores que andamos a sustentar esta cáfila, permitirmos que se comecem a abrir excepções à regra da conformidade da lei à Constituição, estamos bem servidos: atendendo à categoria e à falta de carácter dos tipos, estamos a abrir as portas às escâncaras para todos os abusos e todas as malfeitorias.
É essa a minha opinião.

jama disse...

100anos, concordo inteiramente consigo. Mas sabemos que não há nada mais eficiente (ilegal, traiçoeiro, covarde, pernicioso, etc.) do que tributar situações passadas. É que tributar situações futuras é um pouco "contar com o ovo no cu da galinha". Agora se o ovo já cá está fora... Lembra-se do impostos sobre os lucros das empresas petrolíferas? se fossem tributados pela lei nova os rendimentos que elas auferiram no ano anterior ao da criação da lei, apanhavam-nas a todas. Como a lei só valeu - como legalmente devia valer, e para todos - apenas para o futuro, os resultados da criação do imposto estão à vista.

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