Blog que trata dos livros, da leitura, da música e da reflexão política e social.


quarta-feira, março 07, 2007

Contos Estelares - X

Into deep space

Cada um foi para o seu camarote instalar-se confortavelmente. O piloto automático, controlado pelo computador central, estava a trabalhar em pleno sendo desnecessário por enquanto cuidados humanos na navegação.
Augusta Nina recostou-se bem na cama, puxou de um livro de poesias e começou a sua leitura preferida; daí a pouco cairia num sono reparador, característico das almas justas.

Cleópatra preferiu ouvir música e colocou no aparelho de CD/DVD o inevitável Rodrigo Leão.
Pensativa, meditou no que tinha deixado para trás, não na Terra, mas na estação espacial – espaço à farta, pouco trabalho, sistemas automáticos ultra-sofisticados, comida boa a horas e descanso quando queria; sentia que tudo iria mudar agora - e não estava segura de que seria para melhor. Cleópatra estava muito contrariada por ter que partilhar responsabilidades com Funes e Cem; não era antipatia, até lhes achava piada, mas tinha a sensação fatal de que a sua inferioridade histórica de sexo fraco viria ao de cima cedo ou tarde e poderia trazer-lhes sarilhos a todos; o (mau) material tem sempre razão !, pensava ela, preocupada.
Funes escolheu três catrapázios de História contemporânea e retirou-se para os seus aposentos.

Neves já dormia no seu camarote, quando Cem se resolveu a deixar a sala de comando (tinha ficado até ao último momento, verificando e re-verificando a certidão das coordenadas do computador; não seria grave, mas seria desagradável ter que reajustar alguns graus a trajectória da nave, se a direcção inicialmente tomada não fosse inteiramente correcta.
Foi para o seu camarote e finalmente deitou-se: parecia-lhe mentira estar envolvido numa aventura daquelas como que por acaso. Pegou num livro, “O Enigma de Aristóteles”, tirou a roupa exterior ficando apenas com a roupa-pele (roupa finíssima que aderia ao corpo quase sem se dar por ela, feita de uma fibra que era uma mistura de algodão e linho, super-confortável), estendeu-se na cama com cuidado (a malfadada hérnia discal andava um pouco assanhada e ele tinha que tomar cuidados, dormindo sempre em colchão duro e de barriga para cima, sem almofada), ajustou o livro ao aparelho de leitura que tinha inventado uns anos antes – e começou a sua leitura terapêutica.
Durante o período de treino e preparação, tinham acordado em que a nave seria governada por um triunvirato em rotativismo, cabendo naquele momento o governo a Neves, Cleópatra e Funes; dentro de 1 mês Funes cederia o lugar a Augusta, dentro de 2 meses Neves cederia o lugar a Cem, dentro de 3 meses seria Cleópatra a ceder o lugar a Funes.

“Consegue ler ?”, indagou Cleópatra pelo intercomunicador.
“Bem, ainda não, mas não tarda; já coloquei o meu aparelhómetro e...”

“Pois é isso, Cem, creio que o ouvi dizer que tinha uma aparelho para leitura...”

“E tenho – construí-o na praia, a partir de um suporte de harmónica”.

“Você era capaz de me construir um aparelho desses ?”, perguntou Cleópatra um pouco a medo.

“Claro, Cleópatra, por acaso até tenho comigo mais um aparelho desses, o primeiro protótipo que fiz, espere aí que eu já lho dou” – passado pouco tempo Cem passou no camarote de Cleópatra e entregou-lhe o aparelho; explicou-lhe como funcionava e voltou aos seus aposentos.

Deitou-se e começou a ler.
Passado uma meia hora começou a sentir sono.
Antes de adormecer ligou o computador para ver se estava tudo em condições.

Tudo estava normal.
Na parte das mensagens internas viu uma mensagem de Cleópatra que lhe era dirigida e sorriu ao ler “reconheço a eficiência do seu invento; como é que se chama ?” Cem teclou rapidamente duas palavras: “Cem Letras”.
O silêncio foi tomando conta da nave – João Pestana poisou suavemente no tombadilho.

5 comentários:

Anónimo disse...

A mafaldada hérnia discal...colchão duro...de barriga para cima...
Coitadinho, isso de ter cem anos não é muito saudável. Se calhar é melhor ter só 99 anos e onze meses e 29 dias.

100anos disse...

A menina Neves não devia gozar com a desgraça alheia.
Foi por causa da famigerada hérnia discal que um dia uma terapeuta boazona com ar de gozo me saltou literalmente para a garupa depois de me ter ordenado que me deitasse de barriga para baixo, e depois desatou a fazer movimentos rítmicos pressionado-me as vértebras.
Como é natural, fiquei desvairado.
Mais desvairado fiquei quando ela, gozona, me perguntou "quando é que quer a próxima esfrega ?, cuidado não se dobre tanto, olhe a hérnia..."

Cleopatra disse...

Cem passou no camarote de Cleópatra ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,bem, bem, bem

100anos disse...

Maldosa !
Cem é um cientista que constrói objectos de uso corrente - a ideia de fazer um suporte para ler livros na praia ocorreu-lhe numa altura em que se lembrou de que era muito mais agradável ler na praia no sistema "hand free" do que ter que agarrar no livro.
Essa singela costela de cientista maluco de Cem, sofisticado nos instrumentos mas simples nas relações humanas, faz com ele seja algo ingénuo em relação a almas mais retorcidas.
Claro que ainda ninguém lembrou que dentro de uma nave espacial dificilmernte pode bater o sol da praia, mas quando e se alguém alvitrar tal asserção confio que Cem se saberá desenrascar.

100anos disse...

E para a castigar, não volto ao seu camarote - e hei-de lá pôr um alienígena horrendo com a minha amiga a pedir afltivamente socorro e eu não vou lá, para não ser mal interpretado.
Bem feita !
(Nunca se meta com o autor da estória sem saber como é que ela acaba...)

eXTReMe Tracker