Blog que trata dos livros, da leitura, da música e da reflexão política e social.


quinta-feira, abril 09, 2009

Enriquecimento – II

Vejo que há ainda muita gente confusa com a história do enriquecimento e do ónus da prova.
Já vi escrito várias vezes que a inversão do ónus da prova acabará por obrigar o cidadão a provar que está inocente, quando na verdade era à polícia e ao MP que caberia o encargo de provar que é culpado.
Nada disso.
Insisto que não há inversão do ónus da prova.
Para melhor exemplificar, vou recorrer a um exemplo saído directamente de um conto policial:
Imagine você que tem um ódio profundo por um vizinho - o homem é labrego, burgesso, apanha pielas de caixão à cova e arma tremendas barafundas alcoólicas à porta do prédio, espanca a mulher e os filhos, é conhecido por ser vígaro e dar a sua perninha de ladrão, tem a mania de pôr o carro em 2ª fila e emparedar os carros alheios e ainda por cima aparece depois com cara de provocador perguntando “o que foi ?” quando o dono do carro emparedado protesta.
O tipo é execrável, uma besta completa e V. já uma ou duas vezes perdeu a calma e lhe disse que não se ensaiava nada em lhe dar um enxerto de porrada se ele continuasse a sua senda de anormalidade militante e provocatória; da segunda vez V. foi-lhe aos fagotes e deu-lhe uma murraça no focinho.
Um belo dia V. vai sair de casa e dá com o seu carro emparedado pelo carro do alarve.
Volta ao prédio e toca na campainha do animal.
Ele não responde.
V. chateia-se e vai mesmo lá a casa, encontra a porta aberta e dá com um cenário dantesco – a mulher está desmaiada a um canto, o homem está morto com uma faca espetada no peito; V. tenta ajudar e extrair a faca do corpo do homem, convencido que ele ainda pode escapar.
Passados dez minutos chega a polícia e dá com esta cena: o homem esfaqueado e morto e V. no meio da confusão, coberto de sangue e com uma faca na mão.
Vem-se a descobrir que V. já tinha andado à pancada com o morto e que o tinha ameaçado várias vezes que lhe “fazia a folha”.
A polícia tem a prova praticamente feita: V. chegou ao seu carro, verificou que estava emparedado, foi protestar, zangou-se com o animal, entrou numa cena de pancadaria com ele e no meio da refrega deu-lhe uma facada que o matou.
Por outras palavras: V. foi apanhado numa posição altamente comprometedora, todos os indícios apontam no sentido da sua culpabilidade.
Vai ter que provar que não é o autor do crime, vai ter que procurar testemunhas que saibam mais ou menos o que se passou, vai ter que procurar outros indícios que levem à identificação do verdadeiro autor do crime (a talhe de foice, se isto fosse mesmo um conto policial, eu optaria por uma quadrilha de traficantes de droga ter matado o homem em retaliação a uma “banhada”).
A polícia tinha o ónus de provar que V. é culpado – e prova que V. e o morto tinham péssimas relações, que V. já lhe tinha uma vez afeiçoado as faces, que V. estava na cena do crime imediatamente após o seu cometimento com uma faca na mão que foi identificada como a arma do crime e coberto com o sangue da vítima.
V. tem que provar, naturalmente, todos os factos que contrariem a versão policial.
Houve aqui alguma inversão do ónus da prova ?
Não, não houve.
Ora o cidadão que é dono de um vasto património e que não consegue de forma nenhuma explicar de onde lhe veio aquela massa toda está numa situação semelhante à sua, no exemplo indicado: está numa posição altamente comprometedora.
Caber-lhe-á, tal como lhe coube a si no exemplo acima, provar que apesar de todos os indícios comprometedores, a aquisição da sua fortuna comprovada teve origem lícita.
Não houve igualmente inversão do ónus da prova.

Sem comentários:

eXTReMe Tracker