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terça-feira, abril 07, 2009

A Mulher do Cônsul

Um pequeno excerto de uma novela de Steven Saylor, da série Roma sub-rosa, onde se fala de uma Safo muito perigosa.
A Mulher do Cônsul

Francamente — murmurou Lúcio Cláudio, com o nariz enterrado num rolo de pergaminho — quem lesse os relatos das Actas do Dia julgaria que Sertório é um miúdo traquinas, e que a rebelião que organizou em Espanha não passa de uma partidinha inocente. Quando se aperceberão os cônsules da gravidade da situação? Quando se decidirão a agir?
Pigarreei.
Lúcio Cláudio baixou o rolo de pergaminho e ergueu as hirsutas sobrancelhas ruivas.
- Gordiano! Por Hércules, vieste a correr! Senta-te.
Olhei em redor à procura de uma cadeira, mas depois lembrei-me onde estava. No jardim de Lúcio Cláudio, as visitas não andavam a arrastar peças de mobiliário. As visitas sentavam-se nas cadeiras que, nesse preciso momento, eram suavemente posicionadas para o efeito. Avancei para a mancha de luz onde Lúcio estava sentado a gozar o sol, e flecti os joelhos. Como era de esperar, o meu peso foi sustentado por uma cadeira. Nem sequer cheguei a ver o escravo que tratou disso.
— Queres beber alguma coisa, Gordiano? Por mim, estou a tomar uma agradável taça de caldo quente. É cedo demais para beber vinho, mesmo que seja diluído em água.
É meio-dia, Lúcio, não é assim tão cedo. Pelo menos para quem se levantou de madrugada.
(...)
Lúcio inclinou-se para a frente e deu uma pancadinha no pergaminho com a ponta do indicador.
- Lê essa parte. Em voz alta.
- «A traça espeta a cabeça de fora amanhã. Presa fácil para o pardal, mas as perdizes passam fome. Diz a Safo de olhos de fogo: Suspeita! Um punhal atinge o alvo mais depressa que um raio. Melhor ainda: mais depressa que uma seta. Que Vénus conquiste a todos!»
Lúcio recostou-se na cadeira e cruzou os braços carnudos.
- O que achas disto?
- Julgo que lhe chamam uma comunicação anónima; é uma coscuvilhice publicada em código. Sem nomes próprios, só com pistas, sem significado para os não iniciados. Dada a menção a Vénus, imagino que esta seja sobre um caso amoroso ilícito. Duvido que conhecesse os nomes das pessoas envolvidas, mesmo que eles tivessem sido escritos com toda a clareza. Tens muito mais probabilidades do que eu de saber o que tudo isto significa, Lúcio.
— Pois tenho. Na verdade, receio saber mesmo, pelo menos em par-te. Foi por isso que te chamei, Gordiano. Tenho um grande amigo que precisa da tua ajuda.
Ergui uma sobrancelha. Já noutras ocasiões os amigos ricos e poderosos de Lúcio me tinham proporcionado trabalhos lucrativos; e também me tinham obrigado a correr grandes riscos.
- E que amigo é esse, Lúcio?
Ele ergueu um dedo. Os escravos que nos rodeavam retiraram-se silenciosamente para dentro de casa.
- Discrição, Gordiano. Discrição! Lê novamente a notícia.
- «A traça...»
- E a quem foi que eu chamei traça há momentos?
Pestanejei.
- A Décimo Bruto, o Cônsul.
Lúcio assentiu com a cabeça.
- Continua a ler.
- «A traça espeta a cabeça de fora amanhã...»
- Deci decidiu ir amanhã ao Circo Máximo, assistir às corridas do camarote consular.
- «Presa fácil para o pardal...»
- Tira as tuas conclusões... em especial da referência seguinte aos punhais e às setas.
Ergui uma sobrancelha.
- Estás convencido de que há uma conspiração contra a vida do cônsul, com base numa comunicação anónima, publicada nas Actas do Dia? Parece-me um bocado forçado, Lúcio.
- Não sou eu que estou convencido. É o próprio Deci. O pobre sujeito está num estado; veio a minha casa e obrigou-me a sair da cama há uma hora, pedindo-me desesperadamente que o aconselhasse. Precisa de alguém que vá ao fundo desta questão, discreta e rapidamente. Eu disse--lhe que conhecia o homem ideal para isso: Gordiano, o Descobridor.
- Eu? - Olhei, de sobrolho franzido, para um caroço de azeito-na que segurava entre o indicador e o polegar. — Considerando que as Actas são um órgão oficial, certamente que o próprio Décimo Bruto, na sua qualidade de cônsul, estará na melhor posição possível para de-terminar a origem desta notícia, e o seu real significado. Para começar, quem foi que a escreveu? .
- O problema é justamente esse.
- Não estou a perceber.
- Estás a ver essa parte sobre «Safo» e o conselho que ela dá? — Estou.
- Gordiano, quem achas que escreve e edita as Actas do Dia? Encolhi os ombros.
- Nunca pensei nisso.
- Então vou dizer-te. São os próprios cônsules que ditam as notícias relativas à política, interna e externa, fornecendo o seu ponto de vista, que é a posição oficial. As partes menos importantes, os números relativos ao comércio, às contagens do gado, e outros do género, são compiladas pelos funcionários do gabinete do censor. As notícias do desporto são fornecidas pelos magistrados encarregados da gestão do Circo Máximo. Os áugures são a fonte das histórias acerca dos relâmpagos, dos cometas, de legumes com formatos curiosos e de outros presságios bizarros. Mas quem é que pensas que controla as notícias da sociedade, os anúncios de casamentos e nascimentos, as reuniões sociais, as «comunicações anónimas», como lhes chamaste?
- Uma mulher chamada Safo?
- É uma referência à poetisa da antiga Lesbos. A mulher do cônsul também é uma espécie de poetisa.
- A mulher de Décimo Bruto?
- Foi ela que escreveu essa notícia - Lúcio inclinou-se para a frente e baixou a voz.
- Deci está convencido de que ela planeia matá-lo, Gordiano.

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