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quinta-feira, janeiro 04, 2007

Contos Estelares - odisseia completa

Contos Estelares - apanhado geral

O sol foi ficando lentamente para trás.

O seu enorme disco foi diminuindo e ao fim de um mês de viagem, da nave “Platão”já só se via o disco solar através de instrumentos de alta precisão.
Foi então que o efeito Erkhart foi utilizado na propulsão – e a nave passou a viajar a uma velocidade 10 vezes maior que a velocidade da luz.
O mundo apagou-se, para trás da nave ficou um oceano negro.
Para frente... o desconhecido.
Na nave viajavam 900 mulheres e 100 homens, uma proporção considerada razoável, atendendo a que os homens podiam rapidamente fabricar muitos filhos e as mulheres demoram nove meses a fazê-lo.
Na sua nave gémea, “Aristóteles”, havia uma proporção de homens e mulheres semelhante (uma vez que a mulher é o ser mais avançado da Criação, achou-se que seria bom acentuar essa desproporção com os homens).
A Platão e a Aristóteles partiram da Terra quase ao mesmo tempo, apontando genericamente a Alfa do Centauro, mas fazendo caminhos diferentes – enquanto a Platão ia equipada com um motor Erkhart, a Aristóteles contava apenas com motores tradicionais, capazes apenas de a fazer avançar à velocidade da luz.
(...)

João olhou consternado para o monitor do computador.
Ficou uns minutos silencioso, até que se decidiu e chamou Marta: a cinco anos-luz verificava-se uma depressão no espaço muito mais pequena que um planeta mas com forte radiação – só podia ser uma nave espacial equipada com propulsão nuclear.
A nave enviava uma mensagem constante em linguagem binária, já quase esquecida pelos astronautas.
“São 12 números, todos zeros e uns” disse Marta com o seu ar autoritário.
Marta estava habituada à superioridade natural das mulheres e nunca disfarçava esse complexo de superioridade; ainda por cima achava alguma graça a João (já lhe tinha pregado uma ou duas partidas) e tinha tendência para o pôr no seu lugar, só para mostrar quem é que mandava.
“Já apanhei o código” exclamou João C – L – E – O – P – A – T - R – A.
“Coleópteros são antigos insectos que havia na velha Terra” disse Marta.
“Nada disso” – ouviu-se pela primeira vez em muitos anos a palavra da Profª Augusta Nina, há muito retirada nos seus aposentos, que se dedicava a uma arte antiga e pouco conhecida, a poesia.
“Cleópatra é o nome de uma rainha do antigo Egipto, adorada pelos homens e venerada pelos crocodilos”, explicou a professora – “além disso...”
“M – O – O – N”, completou João, “a nave está a enviar um sinal que significa CLEOPATRAMOON”.
Augusta semicerrou os olhos e disse, sonhadora “em tempos, há muitos anos, tive na Terra uma amiga que tinha por hábito usar esse nome numa publicação cibernética – coitada, já deve estar completamente torrada há dezenas de anos, desde que o sol se tornou numa supernova e implodiu, arrastando todo o sistema atrás dele”.
“Por acaso até estás enganada, Nina” disse uma voz feminina surpreendentemente juvenil, saída do computador.
Toda a tripulação deu um salto, incluindo a Augusta professora.
“Não se assustem” continuou a voz “desculpem, mas não foi difícil captar a frequência do vosso computador e comunicar de viva voz convosco – eu sou uma sobrevivente, tal como vós”.
(continua)
Cleo ?” – perguntou incrédula Augusta Nina.
“Herself, in person”, respondeu o computador, e continuou “deram-me esta nave para experimentar e a meio da experiência reparei que o sol se estava a desintegrar, então rumei a Alfa do Centauro, porque felizmente tinha os depósitos cheios; tenho urânio para dar e vender, comprei-o aos fellahs à revelia dos Américas, e foi um ver-se-te-avias – andei no espaço 3 meses até que vos vi”.
“3 meses ?!”, exclamou João, “mas nós estamos no espaço há 20 anos”.
“Vê-se logo que és homem, ó fedelho”, respondeu o computador, “nunca ouviste falar da compressão do espaço/tempo por acção da aceleração gravitacional ?”
“Afinal, quem é você e quem é que lhe deu confiança para falar assim, mesmo aos inferiores”, indagou Marta, furiosa e belicosa.
“Olha, filha, eu, rufias como tu, meti muitas no xelindró na velha Terra, quando por lá andávamos, mas deixa estar que aqui no espaço não tenho tempo para me ocupar de ti”.
“Mas que raio de merda vem a ser isto, caray ?” perguntou uma voz também vinda do computador, uma voz masculina com sotaque português nortenho.
“Não se cansem a tentar descobrir quem eu sou – também sou um sobrevivente – Funes, El Memorioso, para vossa sorte e azar meu !”
(continua)
“Olá Funes”, exclamou Cleópatra, “modesto como sempre”.
“Olá Colega” disse Augusta, sempre cool.
Ruído de fundo.
Mais ruído de fundo.
Ainda mais ruído de fundo.
Após 10 minutos de ruído ouviu-se claramente o código de identificação de uma nave Erkhart, produzindo um ruído cada vez mais escandaloso em que se podia reconhecer o “Made in Japan”, dos Deep Purple.
Smoke, on the water, smoke on the water, how did you lose your virginity, Marylou, when will you lose your stupidity, Marylou…”
“Porra, temos mais um conviva”, exclamou Funes “quem és tu, ó meu ?”
“UUUppss, já não estou sozinho – e quem pergunta o meu nome ó meu ?” ressoou o computador.
“Sou Funes, El Memorioso, nomeado pelo Matriarcado Terrestre da Sempiterna Superioridade Feminina para fazer a história destes viajantes espaciais – e agora, poderás responder à minha pergunta ? Quem és tu ?”.
“Sou o 100anos – chiça que em Terra escolhi o pseudónimo de 100 anos de solidão e já gramei com cinquenta aninhos a ouvir sozinho as músicas da minha criação – é bom vê-lo/ouvi-lo, caro Funes, é excelente ver que temos a Augusta Nina e a Cleópatra entre nós, está recomeçada a sociedade humana, mais coisa menos coisa”.
“Merda, que já perdi quinhentos paus”, ouviu-se no computador a voz de Cleópatra.
Augusta Nina exclamou “és tu, Cem ?, que engraçado, nós todos juntos numa esfera de cinquenta anos-luz, estamos mais próximos do que se estivéssemos a tomar uma bica do bar das letras”.
“Olhe lá, ó Dona Cleópatra, você está a exagerar”, disse 100anos, “os seus trejeitos autoritários aqui no deep space não valem uma petição inicial mal enjorcada, percebeu, sua ditadorazeca-de-trazer-por-casa ?”
Ouviu-se um ruído estrilhado, seguido de silêncio; passado um pouco ouviu-se a voz de Cleópatra “desculpem, mas sem querer atirei o microfone contra o computador de bordo e precisei de fazer o reset, mas já está tudo bem – olhe, ó senhor Cem, eu nunca lhe dei confiança para me falar dessa forma deselegante e desabrida, fique sabendo que já lhe apanhei o sinal astronómico e não me ensaio nada para lhe pregar com uma ameixa de 20 megatoneladas, percebeu, seu atrevido ?
(continua)


Contos Estelares - II

“Olhe, Cleópatra, vamos fazer um pacto: você não me faz ameaças infantis e eu não me rio de si, OK ? Então pensava que eu vinha para o espaço exterior sem ter um escudo anti-projécteis capaz de travar qualquer ataque ?”.
Fez-se finalmente silêncio.
João, Marta, Augusta, Cleópatra, Funes e Cem mantiveram o silêncio durante tanto tempo que ele começou a ficar pesado. Todos eles pensavam na vida e na forma de sobreviverem. Por sugestão de Marta, puseram todos os computadores de bordo de todas as naves em comunicação, de forma a alargar a base de conhecimento de todos.
De súbito, os computadores começaram a emitir um sinal de alerta – não era um alerta de perigo imediato, era apenas um alerta de avaria no porão da nave de 100anos.
“Cem, consegue ir ver o que se passa, enquanto nós esperamos ?” indagou Funes.
“Vou tentar”. 100anos saiu da cabine de comando e começou a descer a longa escadaria sem gravidade que levava ao porão; aí chegado, verificou que uma figura estava sentada numa banheira criogénica, coisa muito estranha, pois a banheira criogénica destinava-se a deixar em hibernação qualquer ser vivo que lá se colocasse até ser despertada lentamente através de um processo de aquecimento artificial muitíssimo sofisticado.
O que teria corrido mal ? A figura sentada viu 100anos e exclamou “já não era sem tempo, Cem, por este andar deixavas-me congelada até ao dia do juízo final” – Neves de Ontem, em todo o seu esplendor de jovem salerosa, sorria.
“Ó Neves, que grande susto ! Mas então como estás acordada ?”.
“Deves ter sido tu a accionar o processo”.
“Não fui”.
Xiiiii – desculpem, meus amigos, mas o meu computador já fez merda”, disse Funes, “já compreendi – foi o meu computador, que está programado para a des-criogenização automática, que quando entrou em contacto com o computador do Cem enviou o sinal automaticamente e accionou o despertar da Nieves – olá Nieves, Bela Adormecida, voltaste à vida !”.
“Olá Prof. Funes, buenos ojos o vejam – ó Cem, ajuda-me aqui a sair deste sarcófago gelado, senão nunca mais me despacho”.
100anos lá foi ajudar – assim que carregou no botão da normalização criogénica cessou o aviso de alerta que estava a enervar toda a gente.
“Bom”, disse 100anos, “acho que devo uma explicação a todos: quando saí da Terra trouxe comigo algumas pessoas amigas clandestinamente; uma delas foi a Nieves; disfarcei-a de “Vitória de Samotrácia”, meti-a num molde de mulher sem braços (claro !) e quando a Polícia Inter-Estelar me inspeccionou o porão, disse que era uma estatueta de adorno; os tipos deixaram passar, a ela e aos outros que – estranhamente – continuam criogenizados”.
“Não é nada de espantar”, disse Funes, “claro que já anulei a ordem automática do meu computador, a partir de agora não vai des-criogenizar ninguém”.
No problem, Funes, eu de qualquer maneira ia mesmo despertar a Nieves a curto prazo, pois estou a precisar de ajuda na manipulação dos comandos desta nave”.
(continua)

Contos Estelares - III

Os heróis espaciais continuaram a dialogar durante longo tempo.
Cleópatra aceitou deixar de enviar remoques a 100anos.
Marta resignou-se a que alguma das outras mulheres enviasse volta e meia um sarcasmo a João: afinal de contas, como Marta sabia muito bem, João pertencia ao sexo inferior, ainda mais inferior que Funes ou 100anos, pois não comandava uma nave e era um subalterno naquela em que estava.
Aliás, todas as mulheres encaravam Funes e 100anos como uma espécie de “quase-pares”, pois eram comandantes de naves, por isso gente poderosa, mas eram homens, por isso gente algo inferior.
As coisas no espaço estavam a acontecer – exactamente – à velocidade da luz.
Concordaram em colocar todas as naves numa órbita hiperbólica tendo por eixo uma linha recta imaginária entre o desaparecido sol e a Alfa de Centauro, sendo que a ideia era que cada nave varresse com scanners a sua área no sentido de os computadores detectarem planetas habitáveis para o ser humano.
Funes, que estava quase a mudar o seu nome de El Memorioso para El Misericordioso, concordou em facultar a todos os outros os arquivos do Matriarcado Terrestre da Sempiterna Superioridade Feminina, incluindo os próprios registos que ele, Funes, já havia feito nesses arquivos desde a partida da Terra.

Neves de Ontem foi encarregada de todos os sistemas da nave de 100anos, à excepção do sistema de navegação, o que deixou as mulheres algo perplexas – na verdade, se 100anos pensara acordar Neves do seu sono criogénico, seria a coisa mais natural tirar partido da sua superioridade natural feminina colocando-a à testa de todos os sistemas significativos da nave.

“Não quero, desculpem lá mas o sistema de navegação controlo eu”, insistia Cem, renitente, “sempre fui eu a guiar os meus caminhos e não é agora que vou mudar”.

“Compreendo-o” declarou Funes, “e tiro o meu chapéu à sua coragem em afrontar o matriarcado nesta situação – é de homem, caray !”

“Senhor Funes, tenha dó”, adiantou Cleópatra, “contemporizar com um disparate é uma coisa, manifestar concordância activa com ele, é demasiado descarado”.

As outras mulheres (Augusta, Marta, Neves) emitiram murmúrios de acordo.
“Bom”, obtemperou Augusta, conciliadora, “agora o que interessa é mantermos a nossa pequena comunidade activa e eficiente – não haveria nada mais lamentável do que deixarmos escapar algum planeta habitável enquanto estamos para aqui a discutir o sexo das anjas”.
Apesar do tom conciliador, ficou no ar a ideia de que o pobre Cem era helpless.

(continua)

Contos Estelares - IV

"Desculpar-me-á, Cleópatra, mas eu não disse que concordo com o Cem, limitei-me a registar admiração por uma atitude corajosa, embora - acrescento agora - totalmente inconsequente", disse Funes, sibilinamente.
"Homens, são todos iguais e só pensam numa coisa", respondeu irritadamente Cleópatra, acrescentando sotto voce "não fazem nenhum e só pensam em carcanhol, os inúteis".
Toda a gente educadamente ignorou a tirada cleopatraniana.
"Continuas-me a pisar os calos, mas há-de haver um dia de libertação" pensou Cem com os seus botões, mais concretamente com os seus fechos éclairs, dado que o seu uniforme não tinha botões.
Por sugestão de Neves, todos anuíram a entrar em pseudo-sono profundo, ficando apenas ela acordada.
"Estou farta de dormir", explicou Neves, "já tive a minha conta, mas vocês estão cansados e desgastados; a minha sugestão é a de que toda a gente descanse enquanto for possível".
Antes, porém, foi necessário colocar em rede permanente todos os computadores, estabelecer sistemas de segurança automáticos para o despertar do pseudo-sono no caso de alguma coisa acontecer a Neves, corrigir trajectórias das naves mais excêntricas e programar os sensores para a detecção automática de sistemas habitáveis.
"E música ?", perguntou Cem.
"Música ?!", disseram várias vozes.
"Sim, música, amigos, é sabido que durante o sono o cérebro humano aceita estímulos; desde que esses estímulos sejam adequados, o sono só terá a ganhar em descanso e divertimento da pessoa em causa; eu, por exemplo, poderei programar o meu computador para me proporcionar música dos sixties, que é a que eu mais gosto, tipo Beatles, Stones, Hendrix, Neil Young, Eric Clapton".
Assim as futuras e os futuros Belas(os) Adormecidas(os) escolheram as suas músicas.
Augusta Nina escolheu entre outros Diana Kroll, Eric Clapton e muita música clássica.
João e Marta, jovens já nascidos na nave, escolheram música concreta.
Cleópatra escolheu algumas melodias em que avultavam as canções de um tal Frank Sinatra e pulou de fúria quando alguém disse "pimba, pimba" no intercomunicador, mas não se deu por achada; em surdina, optou ainda pelo
Michael Bublé e pelo Rodrigo Leão.
Funes escolheu os clássicos.
Todos sabiam que aquele soninho iria durar várias décadas...
Fim do capítulo I
(continua)

Contos Estelares - V


Capítulo II – Viagem pelo éter infinito

Neves olhou para a maquinaria da cabine que a rodeava e pensou como se enganara.
Estivera convencida de que o longo período de solidão que tinha começado iria ser entediante e chato, quando, pelo contrário, estava sempre a ser solicitada para as mais diversas tarefas.
Naquele momento acendeu-se a luz do robot Explorador, indicando mais uma vez que havia à frente um sistema solar possivelmente habitável; já era a 5ª vez que isso acontecia, nas restantes quatro vezes verificou-se rapidamente que era alarme falso.
Neves saltou e foi examinar o visor, onde já se estava outra vez a formar a mensagem “Demasiada radiação – impossível a vida humana”
Mais um falso alarme !
O grupo de naves há muito que tinha ultrapassado Alfa do Centauro, que estava a cerca de 4,2 anos-luz da antiga Terra – todos os planetas antes prometedores tinham sido contaminados pela implosão do sol terrestre, pelo que agora só havia uma coisa a fazer, tal como previamente combinado com os restantes: manter a formação de naves e seguir em direcção da nebulosa de Andrómeda onde a estrela Alfa de Andrómeda tinha à sua volta planetas prometedores; esta estrela estava a 97 anos-luz da antiga Terra e havia poucas possibilidades de a radiação libertada pela implosão do sol a ter afectado; ela e a sua gémea eram cerca de 200 vezes mais brilhantes que o sol e no seu núcleo registavam-se temperaturas da ordem dos 13.000 graus Kelvin.

97 anos-luz !
E as naves só podiam avançar à velocidade da luz, pois algumas delas não ultrapassavam tal velocidade – se queriam seguir juntos, os astronautas teriam que adoptar a velocidade dessas naves.
Neves ponderou o que deveria fazer.
Os outros astronautas estavam em hibernação, com os processos de envelhecimento praticamente parados; daí a 97 anos estariam mais ou menos na mesma.
Mas Neves estaria com mais de 120 anos e mesmo com as técnicas mais modernas de retardamento do envelhecimento estaria uma idosa muito mirradinha por essa época.
Lembrou-se a despropósito de uma frase do “Corsário Negro” de Emílio Salgari, que tinha lido na adolescência: “como resolver dilema tão atroz ?”
Mierda, mierda, pensou, estou metida numa embrulhada dos demónios.
Não, aquilo não podia ser assim, alguma coisa estava a falhar de certeza.
Neves introduziu os dados num computador portátil e esperou os resultados durante um bom bocado.
Finalmente apareceram: “Secção 3-C do Manual de Bordo, Capítulo 32, Versículo 10”.
Clicou no link respectivo e apareceu a regra do manual: “A nenhum membro da tripulação é lícito tomar decisões isoladamente que impliquem um período de tempo de adormecimento dos restantes superior a 10 anos; nessa eventualidade o tripulante deve acordar um adormecido qualificado e aconselhar-se com ele sobre a decisão a tomar; se as opiniões dos dois não forem idênticas ou razoavelmente semelhantes, deverão acordar um terceiro membro da tripulação, que desempatará”.
Bale !, suspirou Neves com alívio.
Decidiu acordar Cleópatra.

(continua)

Contos Estelares - VI

Cleópatra sentou-se no sarcófago criogénico, que estava de tampa aberta, e o seu olhar dirigiu-se logo para o calendário, apercebendo-se de que tinha estado em hibernação muito pouco tempo.
A seu lado João, Marta e Augusta dormiam o sono dos justos.

Sabia que nas respectivas naves Funes e Cem dormiam também.
Sabia também que provavelmente teria sido Neves a acordá-la, a não ser que algum acidente tivesse accionado o despertar automático.
Pouco depois Neves juntou-se-lhe em videoconferência, ambas já nas respectivas salas de comando das suas naves.

Neves explicou a Cleópatra o que tinha acontecido e a razão porque a tinha acordado.

Explicou que tinha configurado várias hipóteses para a solução do problema que enfrentavam:

1. Usar a nave em que estavam, Poseidon, que tinha propulsão Erkhart e que podia em poucos anos fazer a viagem a Andrómeda e voltar (a propulsão Erkhart permitia viagens a 20 vezes a velocidade da luz; em cerca de 10 anos-padrão a Poseidon conseguiria deslocar-se 200 anos-luz, ou seja, podia fazer uma viagem de ida e volta a Andrómeda).

2. Deixar a expedição prosseguir apenas à velocidade da luz, tentando descobrir um sistema habitável antes de Andrómeda.

3. Obrigar os computadores a fazerem um “brainstorming” por forma a apurar quais os sistemas estelares próximos mais prometedores em termos de habitabilidade (opção perigosa pois era frequente nestas tentativas um ou dois computadores não aguentarem a carga de terabytes envolvida e rebentarem os discos e as memórias centrais.

4. Combinar as partes compatíveis das hipóteses 1, 2 e 3.

Neves deixou bem claro que a sua preferência tendia para a hipótese 3 – computer brainstorming.

Cleópatra disse-lhe que precisaria de pelo menos 24 horas de estudo e reflexão para se sentir com o à vontade de formular uma opinião.

Meteu-se na sua cabine manejando o computador portátil, fazendo cálculos e mais cálculos, tudo a funcionar sobre o sistema operativo Windows.

Passado umas horas voltou à sala de comando e requisitou um novo portátil equipado com outro sistema operativo, o Linux; depois de o receber, trabalhou mais umas horas, dizendo volta e meia uma imprecação em surdina.

Finalmente, cansadíssima e insone, voltou a ligar a videoconferência, contactando Neves.

“Minha amiga, estamos com um problema”, disse, “creio que a tua proposta é inadequada, segundo os meus cálculos a hipótese 1 é a mais prometedora, oferecendo 80% de margem de sucesso, enquanto nenhuma das outras ultrapassa os 60% de probabilidades”.

“Temos de acordar o terceiro elemento”, constatou Neves, “mas quem ?”

“Simples”, respondeu Cleópatra, “isto é um problema sério, tem que ser resolvido pelos mais capazes e os mais capazes somos nós, as mulheres, como concordarás – a nossa melhor mulher adormecida, pela sua sagacidade e pela sua experiência é Augusta Nina”.

“Seja”, anuiu Neves, “mas por favor, depressa, porque estamos a chegar a um eixo axial importante da viagem e a eventual mudança de eixo tem que ser decidida a curto prazo”.

Accionaram o despertar de Augusta.

Passado uma hora já Augusta estava desperta e inteirada do problema que enfrentavam.

“Cabe-me então a mim desempatar”, constatou Nina, olhando preocupada para o visor de videoconferência – “oiçam lá, e se eu tiver uma quinta opinião não coincidente com nenhuma das vossas ?”.

“É que tenho mesmo, caras amigas, a minha opinião é a de que perante todo este imbróglio a nossa melhor hipótese de sucesso é a ligação física das quatro naves e a construção de uma estação espacial que apontaremos ao sistema solar mais próximo, mas qual ?”

“Bom, como sabemos da mitologia, a figura formada pelas estrelas próximas à constelação de Cepheus lembra a duma figura humana sentada num trono – só que de cabeça para baixo. Para os gregos, isso representava a punição por um crime severo e logo associaram essa constelação ao mito de Cassiopéia: a vaidosa rainha da Æthiopia que comparou sua beleza à das Nereidas, filhas de Poseidon. Como punição, os deuses exigiram que sua filha, Andrômeda, fosse sacrificada ao monstro Cetus (uma besta similar a uma baleia) para que seu país não fosse inundado pelas ondas de Poseidon”.

“De cabeça para baixo estou eu a ficar, Nina”, disse Neves, “não estou a compreender onde queres chegar”.

“Bom, eu cá já nem sei se tenho cabeça”, suspirou Cleópatra, “que havemos de fazer ?”

Concordaram em consultar o Manual de Bordo, indagando qual o procedimento no caso de as três terem opiniões divergentes, introduziram os dados no computador central da nave de Nina (o mais poderoso de todos), o qual pouco depois despejou a resposta: "o sistema determina que três mulheres discordantes são demasiado teimosas nas suas opiniões, levando a um perigoso desequilíbrio de segurança, a solução indicada é elegerem um homem dos adormecidos qualificados e nomearem-no vosso chefe máximo - só um homem poderá lidar com 3 mulheres ao mesmo tempo sem se envolver em discussões inultrapassáveis".

"A máquina enlouqueceu", exclamaram as três, incrédulas.
(continua)

Contos estelares - VII

"A máquina enlouqueceu", exclamaram mais uma vez as três, incrédulas.
No visor do computador apareceu outra mensagem:

“Como mulheres (...) que são, as senhoras julgam que o computador enlouqueceu, naturalmente.

Fui programado para aceitar contingências dessa natureza.

Há uma alternativa à nomeação de um homem-chefe: acordarem os dois adormecidos qualificados (Funes e Cem) e aceitarem-nos como vossos pares em todos os debates e discussões que se vão seguir”.

“Bom, continuo a pensar que a máquina está com algum problema, mas esta alternativa já me parece mais razoável”, disse Cleópatra.

As outras duas ex-Belas Adormecidas concordaram.

Resolveram pois acordar os dois adormecidos, o que fizeram acto contínuo.

“Que fome !”, exclamou Cem espreguiçando-se “bolas, foram-me acordar quando eu estava a sonhar com iguarias gastronómicas inexprimíveis”.

“Também tenho fome” declarou sucintamente Funes.

“Bom, mas é necessário discutirmos”, obtemperou Neves.

“Desculpem lá, minhas Senhoras, mas eu sou incapaz de discutir o que quer que seja, de barriga vazia e com esta fome ! Posso oferecer-vos uma feijoada com todos, feita à transmontana, que poderei confeccionar aqui e enviar-vos pelo transpositor de matéria”.

“Também tenho fome” repetiu igualmente sucintamente Funes.

“Funes, V. está a ficar um bocadito monocórdico”, chasqueou Cleópatra, “mas o melhor é não perdermos mais tempo e conciliar tudo – Cem, em quanto tempo consegue fazer a feijoada ?”

“Em uma hora posso ter tudo pronto”.

Os outros concordaram em esperar pela dita.

Uma hora depois começaram as chegar as feijoadinhas quentinhas às várias naves, acompanhadas por um arroz branco malandrinho e torresmos transmontanos para servir à parte; em anexo, chegaram também umas garrafinhas de vinho tinto “Dão Meia Encosta”, para “acompanhar à missa” e um piri-piri especial made in Cem.

Todos comeram e beberam excelentemente, tendo mesmo Augusta declarado que há muito não comia uma feijoada tão bem apurada, e – pasme-se ! – com a concordância de todas as outras mulheres.

“Cem, como é que V. faz isto ?”, perguntou Funes entusiasmado.

“Oh, oh, meu amigo, são alguns anos de escravidão na cozinha de algumas mulheres que conheci na velha Terra – cheguei à conclusão de que a única forma de elas me darem alguma liberdade era alcançar-lhes as barriguinhas, desenvolvi esta técnica de feijoada e nunca mais tive problemas – se as estimar bem, com bons cozinhados, elas dão-me uma margem de liberdade de movimentos que nunca conseguiria ter como simples técnico qualificado, mesmo da classe A”.

“Já todos comeram ?”, indagou Cem.

Já todos tinham comido e bebido.

Os cinco iniciaram então uma reunião em videoconferência, debatendo as hipóteses em cima da mesa.

Cem declarou pouco depois que achava a 1ª hipótese a mais susceptível de sucesso, desde que combinada, na medida do possível com a proposta de Augusta.

Funes declarou que concordava, desde que as naves interligadas tivessem sistemas de privacidade que inviabilizassem qualquer intromissão na vida privada de cada um.

Neves e Augusta concordaram com as sugestões e Cleópatra sempre estivera de acordo com a solução gizada.

Havia muito a fazer.

(continua)



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