Contos Estelares - odisseia completa
Contos Estelares - apanhado geral
O sol foi ficando lentamente para trás.
O seu enorme disco foi diminuindo e ao fim de um mês de viagem, da nave “Platão”já só se via o disco solar através de instrumentos de alta precisão.
Foi então que o efeito Erkhart foi utilizado na propulsão – e a nave passou a viajar a uma velocidade 10 vezes maior que a velocidade da luz.
O mundo apagou-se, para trás da nave ficou um oceano negro.
Para frente... o desconhecido.
Na nave viajavam 900 mulheres e 100 homens, uma proporção considerada razoável, atendendo a que os homens podiam rapidamente fabricar muitos filhos e as mulheres demoram nove meses a fazê-lo.
Na sua nave gémea, “Aristóteles”, havia uma proporção de homens e mulheres semelhante (uma vez que a mulher é o ser mais avançado da Criação, achou-se que seria bom acentuar essa desproporção com os homens).
A Platão e a Aristóteles partiram da Terra quase ao mesmo tempo, apontando genericamente a Alfa do Centauro, mas fazendo caminhos diferentes – enquanto a Platão ia equipada com um motor Erkhart, a Aristóteles contava apenas com motores tradicionais, capazes apenas de a fazer avançar à velocidade da luz.
(...)
João olhou consternado para o monitor do computador.
Ficou uns minutos silencioso, até que se decidiu e chamou Marta: a cinco anos-luz verificava-se uma depressão no espaço muito mais pequena que um planeta mas com forte radiação – só podia ser uma nave espacial equipada com propulsão nuclear.
A nave enviava uma mensagem constante em linguagem binária, já quase esquecida pelos astronautas.
“São 12 números, todos zeros e uns” disse Marta com o seu ar autoritário.
Marta estava habituada à superioridade natural das mulheres e nunca disfarçava esse complexo de superioridade; ainda por cima achava alguma graça a João (já lhe tinha pregado uma ou duas partidas) e tinha tendência para o pôr no seu lugar, só para mostrar quem é que mandava.
“Já apanhei o código” exclamou João C – L – E – O – P – A – T - R – A.
“Coleópteros são antigos insectos que havia na velha Terra” disse Marta.
“Nada disso” – ouviu-se pela primeira vez em muitos anos a palavra da Profª Augusta Nina, há muito retirada nos seus aposentos, que se dedicava a uma arte antiga e pouco conhecida, a poesia.
“Cleópatra é o nome de uma rainha do antigo Egipto, adorada pelos homens e venerada pelos crocodilos”, explicou a professora – “além disso...”
“M – O – O – N”, completou João, “a nave está a enviar um sinal que significa CLEOPATRAMOON”.
Augusta semicerrou os olhos e disse, sonhadora “em tempos, há muitos anos, tive na Terra uma amiga que tinha por hábito usar esse nome numa publicação cibernética – coitada, já deve estar completamente torrada há dezenas de anos, desde que o sol se tornou numa supernova e implodiu, arrastando todo o sistema atrás dele”.
“Por acaso até estás enganada, Nina” disse uma voz feminina surpreendentemente juvenil, saída do computador.
Toda a tripulação deu um salto, incluindo a Augusta professora.
“Não se assustem” continuou a voz “desculpem, mas não foi difícil captar a frequência do vosso computador e comunicar de viva voz convosco – eu sou uma sobrevivente, tal como vós”.
(continua)
“Cleo ?” – perguntou incrédula Augusta Nina.
“Herself, in person”, respondeu o computador, e continuou “deram-me esta nave para experimentar e a meio da experiência reparei que o sol se estava a desintegrar, então rumei a Alfa do Centauro, porque felizmente tinha os depósitos cheios; tenho urânio para dar e vender, comprei-o aos fellahs à revelia dos Américas, e foi um ver-se-te-avias – andei no espaço 3 meses até que vos vi”.
“3 meses ?!”, exclamou João, “mas nós estamos no espaço há 20 anos”.
“Vê-se logo que és homem, ó fedelho”, respondeu o computador, “nunca ouviste falar da compressão do espaço/tempo por acção da aceleração gravitacional ?”
“Afinal, quem é você e quem é que lhe deu confiança para falar assim, mesmo aos inferiores”, indagou Marta, furiosa e belicosa.
“Olha, filha, eu, rufias como tu, meti muitas no xelindró na velha Terra, quando por lá andávamos, mas deixa estar que aqui no espaço não tenho tempo para me ocupar de ti”.
“Mas que raio de merda vem a ser isto, caray ?” perguntou uma voz também vinda do computador, uma voz masculina com sotaque português nortenho.
“Não se cansem a tentar descobrir quem eu sou – também sou um sobrevivente – Funes, El Memorioso, para vossa sorte e azar meu !”
(continua)
“Olá Funes”, exclamou Cleópatra, “modesto como sempre”.
“Olá Colega” disse Augusta, sempre cool.
Ruído de fundo.
Mais ruído de fundo.
Ainda mais ruído de fundo.
Após 10 minutos de ruído ouviu-se claramente o código de identificação de uma nave Erkhart, produzindo um ruído cada vez mais escandaloso em que se podia reconhecer o “Made in Japan”, dos Deep Purple.
“Smoke, on the water, smoke on the water, how did you lose your virginity, Marylou, when will you lose your stupidity, Marylou…”
“Porra, temos mais um conviva”, exclamou Funes “quem és tu, ó meu ?”
“UUUppss, já não estou sozinho – e quem pergunta o meu nome ó meu ?” ressoou o computador.
“Sou Funes, El Memorioso, nomeado pelo Matriarcado Terrestre da Sempiterna Superioridade Feminina para fazer a história destes viajantes espaciais – e agora, poderás responder à minha pergunta ? Quem és tu ?”.
“Sou o 100anos – chiça que em Terra escolhi o pseudónimo de 100 anos de solidão e já gramei com cinquenta aninhos a ouvir sozinho as músicas da minha criação – é bom vê-lo/ouvi-lo, caro Funes, é excelente ver que temos a Augusta Nina e a Cleópatra entre nós, está recomeçada a sociedade humana, mais coisa menos coisa”.
“Merda, que já perdi quinhentos paus”, ouviu-se no computador a voz de Cleópatra.
Augusta Nina exclamou “és tu, Cem ?, que engraçado, nós todos juntos numa esfera de cinquenta anos-luz, estamos mais próximos do que se estivéssemos a tomar uma bica do bar das letras”.
“Olhe lá, ó Dona Cleópatra, você está a exagerar”, disse 100anos, “os seus trejeitos autoritários aqui no deep space não valem uma petição inicial mal enjorcada, percebeu, sua ditadorazeca-de-trazer-por-casa ?”
Ouviu-se um ruído estrilhado, seguido de silêncio; passado um pouco ouviu-se a voz de Cleópatra “desculpem, mas sem querer atirei o microfone contra o computador de bordo e precisei de fazer o reset, mas já está tudo bem – olhe, ó senhor Cem, eu nunca lhe dei confiança para me falar dessa forma deselegante e desabrida, fique sabendo que já lhe apanhei o sinal astronómico e não me ensaio nada para lhe pregar com uma ameixa de 20 megatoneladas, percebeu, seu atrevido ?
(continua)
Foi então que o efeito Erkhart foi utilizado na propulsão – e a nave passou a viajar a uma velocidade 10 vezes maior que a velocidade da luz.
O mundo apagou-se, para trás da nave ficou um oceano negro.
Para frente... o desconhecido.
Na nave viajavam 900 mulheres e 100 homens, uma proporção considerada razoável, atendendo a que os homens podiam rapidamente fabricar muitos filhos e as mulheres demoram nove meses a fazê-lo.
Na sua nave gémea, “Aristóteles”, havia uma proporção de homens e mulheres semelhante (uma vez que a mulher é o ser mais avançado da Criação, achou-se que seria bom acentuar essa desproporção com os homens).
A Platão e a Aristóteles partiram da Terra quase ao mesmo tempo, apontando genericamente a Alfa do Centauro, mas fazendo caminhos diferentes – enquanto a Platão ia equipada com um motor Erkhart, a Aristóteles contava apenas com motores tradicionais, capazes apenas de a fazer avançar à velocidade da luz.
(...)
João olhou consternado para o monitor do computador.
Ficou uns minutos silencioso, até que se decidiu e chamou Marta: a cinco anos-luz verificava-se uma depressão no espaço muito mais pequena que um planeta mas com forte radiação – só podia ser uma nave espacial equipada com propulsão nuclear.
A nave enviava uma mensagem constante em linguagem binária, já quase esquecida pelos astronautas.
“São 12 números, todos zeros e uns” disse Marta com o seu ar autoritário.
Marta estava habituada à superioridade natural das mulheres e nunca disfarçava esse complexo de superioridade; ainda por cima achava alguma graça a João (já lhe tinha pregado uma ou duas partidas) e tinha tendência para o pôr no seu lugar, só para mostrar quem é que mandava.
“Já apanhei o código” exclamou João C – L – E – O – P – A – T - R – A.
“Coleópteros são antigos insectos que havia na velha Terra” disse Marta.
“Nada disso” – ouviu-se pela primeira vez em muitos anos a palavra da Profª Augusta Nina, há muito retirada nos seus aposentos, que se dedicava a uma arte antiga e pouco conhecida, a poesia.
“Cleópatra é o nome de uma rainha do antigo Egipto, adorada pelos homens e venerada pelos crocodilos”, explicou a professora – “além disso...”
“M – O – O – N”, completou João, “a nave está a enviar um sinal que significa CLEOPATRAMOON”.
Augusta semicerrou os olhos e disse, sonhadora “em tempos, há muitos anos, tive na Terra uma amiga que tinha por hábito usar esse nome numa publicação cibernética – coitada, já deve estar completamente torrada há dezenas de anos, desde que o sol se tornou numa supernova e implodiu, arrastando todo o sistema atrás dele”.
“Por acaso até estás enganada, Nina” disse uma voz feminina surpreendentemente juvenil, saída do computador.
Toda a tripulação deu um salto, incluindo a Augusta professora.
“Não se assustem” continuou a voz “desculpem, mas não foi difícil captar a frequência do vosso computador e comunicar de viva voz convosco – eu sou uma sobrevivente, tal como vós”.
(continua)
“Cleo ?” – perguntou incrédula Augusta Nina.
“Herself, in person”, respondeu o computador, e continuou “deram-me esta nave para experimentar e a meio da experiência reparei que o sol se estava a desintegrar, então rumei a Alfa do Centauro, porque felizmente tinha os depósitos cheios; tenho urânio para dar e vender, comprei-o aos fellahs à revelia dos Américas, e foi um ver-se-te-avias – andei no espaço 3 meses até que vos vi”.
“3 meses ?!”, exclamou João, “mas nós estamos no espaço há 20 anos”.
“Vê-se logo que és homem, ó fedelho”, respondeu o computador, “nunca ouviste falar da compressão do espaço/tempo por acção da aceleração gravitacional ?”
“Afinal, quem é você e quem é que lhe deu confiança para falar assim, mesmo aos inferiores”, indagou Marta, furiosa e belicosa.
“Olha, filha, eu, rufias como tu, meti muitas no xelindró na velha Terra, quando por lá andávamos, mas deixa estar que aqui no espaço não tenho tempo para me ocupar de ti”.
“Mas que raio de merda vem a ser isto, caray ?” perguntou uma voz também vinda do computador, uma voz masculina com sotaque português nortenho.
“Não se cansem a tentar descobrir quem eu sou – também sou um sobrevivente – Funes, El Memorioso, para vossa sorte e azar meu !”
(continua)
“Olá Funes”, exclamou Cleópatra, “modesto como sempre”.
“Olá Colega” disse Augusta, sempre cool.
Ruído de fundo.
Mais ruído de fundo.
Ainda mais ruído de fundo.
Após 10 minutos de ruído ouviu-se claramente o código de identificação de uma nave Erkhart, produzindo um ruído cada vez mais escandaloso em que se podia reconhecer o “Made in Japan”, dos Deep Purple.
“Smoke, on the water, smoke on the water, how did you lose your virginity, Marylou, when will you lose your stupidity, Marylou…”
“Porra, temos mais um conviva”, exclamou Funes “quem és tu, ó meu ?”
“UUUppss, já não estou sozinho – e quem pergunta o meu nome ó meu ?” ressoou o computador.
“Sou Funes, El Memorioso, nomeado pelo Matriarcado Terrestre da Sempiterna Superioridade Feminina para fazer a história destes viajantes espaciais – e agora, poderás responder à minha pergunta ? Quem és tu ?”.
“Sou o 100anos – chiça que em Terra escolhi o pseudónimo de 100 anos de solidão e já gramei com cinquenta aninhos a ouvir sozinho as músicas da minha criação – é bom vê-lo/ouvi-lo, caro Funes, é excelente ver que temos a Augusta Nina e a Cleópatra entre nós, está recomeçada a sociedade humana, mais coisa menos coisa”.
“Merda, que já perdi quinhentos paus”, ouviu-se no computador a voz de Cleópatra.
Augusta Nina exclamou “és tu, Cem ?, que engraçado, nós todos juntos numa esfera de cinquenta anos-luz, estamos mais próximos do que se estivéssemos a tomar uma bica do bar das letras”.
“Olhe lá, ó Dona Cleópatra, você está a exagerar”, disse 100anos, “os seus trejeitos autoritários aqui no deep space não valem uma petição inicial mal enjorcada, percebeu, sua ditadorazeca-de-trazer-por-casa ?”
Ouviu-se um ruído estrilhado, seguido de silêncio; passado um pouco ouviu-se a voz de Cleópatra “desculpem, mas sem querer atirei o microfone contra o computador de bordo e precisei de fazer o reset, mas já está tudo bem – olhe, ó senhor Cem, eu nunca lhe dei confiança para me falar dessa forma deselegante e desabrida, fique sabendo que já lhe apanhei o sinal astronómico e não me ensaio nada para lhe pregar com uma ameixa de 20 megatoneladas, percebeu, seu atrevido ?
(continua)
Contos Estelares - II
“Olhe, Cleópatra, vamos fazer um pacto: você não me faz ameaças infantis e eu não me rio de si, OK ? Então pensava que eu vinha para o espaço exterior sem ter um escudo anti-projécteis capaz de travar qualquer ataque ?”.
Fez-se finalmente silêncio.
João, Marta, Augusta, Cleópatra, Funes e Cem mantiveram o silêncio durante tanto tempo que ele começou a ficar pesado. Todos eles pensavam na vida e na forma de sobreviverem. Por sugestão de Marta, puseram todos os computadores de bordo de todas as naves em comunicação, de forma a alargar a base de conhecimento de todos.
De súbito, os computadores começaram a emitir um sinal de alerta – não era um alerta de perigo imediato, era apenas um alerta de avaria no porão da nave de 100anos.
“Cem, consegue ir ver o que se passa, enquanto nós esperamos ?” indagou Funes.
“Vou tentar”. 100anos saiu da cabine de comando e começou a descer a longa escadaria sem gravidade que levava ao porão; aí chegado, verificou que uma figura estava sentada numa banheira criogénica, coisa muito estranha, pois a banheira criogénica destinava-se a deixar em hibernação qualquer ser vivo que lá se colocasse até ser despertada lentamente através de um processo de aquecimento artificial muitíssimo sofisticado.
O que teria corrido mal ? A figura sentada viu 100anos e exclamou “já não era sem tempo, Cem, por este andar deixavas-me congelada até ao dia do juízo final” – Neves de Ontem, em todo o seu esplendor de jovem salerosa, sorria.
“Ó Neves, que grande susto ! Mas então como estás acordada ?”.
“Deves ter sido tu a accionar o processo”.
“Não fui”.
“Xiiiii – desculpem, meus amigos, mas o meu computador já fez merda”, disse Funes, “já compreendi – foi o meu computador, que está programado para a des-criogenização automática, que quando entrou em contacto com o computador do Cem enviou o sinal automaticamente e accionou o despertar da Nieves – olá Nieves, Bela Adormecida, voltaste à vida !”.
“Olá Prof. Funes, buenos ojos o vejam – ó Cem, ajuda-me aqui a sair deste sarcófago gelado, senão nunca mais me despacho”.
100anos lá foi ajudar – assim que carregou no botão da normalização criogénica cessou o aviso de alerta que estava a enervar toda a gente.
“Bom”, disse 100anos, “acho que devo uma explicação a todos: quando saí da Terra trouxe comigo algumas pessoas amigas clandestinamente; uma delas foi a Nieves; disfarcei-a de “Vitória de Samotrácia”, meti-a num molde de mulher sem braços (claro !) e quando a Polícia Inter-Estelar me inspeccionou o porão, disse que era uma estatueta de adorno; os tipos deixaram passar, a ela e aos outros que – estranhamente – continuam criogenizados”.
“Não é nada de espantar”, disse Funes, “claro que já anulei a ordem automática do meu computador, a partir de agora não vai des-criogenizar ninguém”.
“No problem, Funes, eu de qualquer maneira ia mesmo despertar a Nieves a curto prazo, pois estou a precisar de ajuda na manipulação dos comandos desta nave”.
(continua)
Cleópatra aceitou deixar de enviar remoques a 100anos. Marta resignou-se a que alguma das outras mulheres enviasse volta e meia um sarcasmo a João: afinal de contas, como Marta sabia muito bem, João pertencia ao sexo inferior, ainda mais inferior que Funes ou 100anos, pois não comandava uma nave e era um subalterno naquela em que estava.
Aliás, todas as mulheres encaravam Funes e 100anos como uma espécie de “quase-pares”, pois eram comandantes de naves, por isso gente poderosa, mas eram homens, por isso gente algo inferior.
As coisas no espaço estavam a acontecer – exactamente – à velocidade da luz.
Concordaram em colocar todas as naves numa órbita hiperbólica tendo por eixo uma linha recta imaginária entre o desaparecido sol e a Alfa de Centauro, sendo que a ideia era que cada nave varresse com scanners a sua área no sentido de os computadores detectarem planetas habitáveis para o ser humano.
Funes, que estava quase a mudar o seu nome de El Memorioso para El Misericordioso, concordou em facultar a todos os outros os arquivos do Matriarcado Terrestre da Sempiterna Superioridade Feminina, incluindo os próprios registos que ele, Funes, já havia feito nesses arquivos desde a partida da Terra.
Neves de Ontem foi encarregada de todos os sistemas da nave de 100anos, à excepção do sistema de navegação, o que deixou as mulheres algo perplexas – na verdade, se 100anos pensara acordar Neves do seu sono criogénico, seria a coisa mais natural tirar partido da sua superioridade natural feminina colocando-a à testa de todos os sistemas significativos da nave.
“Não quero, desculpem lá mas o sistema de navegação controlo eu”, insistia Cem, renitente, “sempre fui eu a guiar os meus caminhos e não é agora que vou mudar”.
“Compreendo-o” declarou Funes, “e tiro o meu chapéu à sua coragem em afrontar o matriarcado nesta situação – é de homem, caray !”
“Senhor Funes, tenha dó”, adiantou Cleópatra, “contemporizar com um disparate é uma coisa, manifestar concordância activa com ele, é demasiado descarado”.
As outras mulheres (Augusta, Marta, Neves) emitiram murmúrios de acordo.
“Bom”, obtemperou Augusta, conciliadora, “agora o que interessa é mantermos a nossa pequena comunidade activa e eficiente – não haveria nada mais lamentável do que deixarmos escapar algum planeta habitável enquanto estamos para aqui a discutir o sexo das anjas”.
Apesar do tom conciliador, ficou no ar a ideia de que o pobre Cem era helpless.
(continua)
Por sugestão de Neves, todos anuíram a entrar em pseudo-sono profundo, ficando apenas ela acordada.
"Estou farta de dormir", explicou Neves, "já tive a minha conta, mas vocês estão cansados e desgastados; a minha sugestão é a de que toda a gente descanse enquanto for possível".
Antes, porém, foi necessário colocar em rede permanente todos os computadores, estabelecer sistemas de segurança automáticos para o despertar do pseudo-sono no caso de alguma coisa acontecer a Neves, corrigir trajectórias das naves mais excêntricas e programar os sensores para a detecção automática de sistemas habitáveis.
"E música ?", perguntou Cem.
"Música ?!", disseram várias vozes.
"Sim, música, amigos, é sabido que durante o sono o cérebro humano aceita estímulos; desde que esses estímulos sejam adequados, o sono só terá a ganhar em descanso e divertimento da pessoa em causa; eu, por exemplo, poderei programar o meu computador para me proporcionar música dos sixties, que é a que eu mais gosto, tipo Beatles, Stones, Hendrix, Neil Young, Eric Clapton".
Assim as futuras e os futuros Belas(os) Adormecidas(os) escolheram as suas músicas.
Augusta Nina escolheu entre outros Diana Kroll, Eric Clapton e muita música clássica.
João e Marta, jovens já nascidos na nave, escolheram música concreta.
Cleópatra escolheu algumas melodias em que avultavam as canções de um tal Frank Sinatra e pulou de fúria quando alguém disse "pimba, pimba" no intercomunicador, mas não se deu por achada; em surdina, optou ainda pelo Michael Bublé e pelo Rodrigo Leão.
Funes escolheu os clássicos.
Todos sabiam que aquele soninho iria durar várias décadas...
Fim do capítulo I
(continua)
Fez-se finalmente silêncio.
João, Marta, Augusta, Cleópatra, Funes e Cem mantiveram o silêncio durante tanto tempo que ele começou a ficar pesado. Todos eles pensavam na vida e na forma de sobreviverem. Por sugestão de Marta, puseram todos os computadores de bordo de todas as naves em comunicação, de forma a alargar a base de conhecimento de todos.
De súbito, os computadores começaram a emitir um sinal de alerta – não era um alerta de perigo imediato, era apenas um alerta de avaria no porão da nave de 100anos.
“Cem, consegue ir ver o que se passa, enquanto nós esperamos ?” indagou Funes.
“Vou tentar”. 100anos saiu da cabine de comando e começou a descer a longa escadaria sem gravidade que levava ao porão; aí chegado, verificou que uma figura estava sentada numa banheira criogénica, coisa muito estranha, pois a banheira criogénica destinava-se a deixar em hibernação qualquer ser vivo que lá se colocasse até ser despertada lentamente através de um processo de aquecimento artificial muitíssimo sofisticado.
O que teria corrido mal ? A figura sentada viu 100anos e exclamou “já não era sem tempo, Cem, por este andar deixavas-me congelada até ao dia do juízo final” – Neves de Ontem, em todo o seu esplendor de jovem salerosa, sorria.
“Ó Neves, que grande susto ! Mas então como estás acordada ?”.
“Deves ter sido tu a accionar o processo”.
“Não fui”.
“Xiiiii – desculpem, meus amigos, mas o meu computador já fez merda”, disse Funes, “já compreendi – foi o meu computador, que está programado para a des-criogenização automática, que quando entrou em contacto com o computador do Cem enviou o sinal automaticamente e accionou o despertar da Nieves – olá Nieves, Bela Adormecida, voltaste à vida !”.
“Olá Prof. Funes, buenos ojos o vejam – ó Cem, ajuda-me aqui a sair deste sarcófago gelado, senão nunca mais me despacho”.
100anos lá foi ajudar – assim que carregou no botão da normalização criogénica cessou o aviso de alerta que estava a enervar toda a gente.
“Bom”, disse 100anos, “acho que devo uma explicação a todos: quando saí da Terra trouxe comigo algumas pessoas amigas clandestinamente; uma delas foi a Nieves; disfarcei-a de “Vitória de Samotrácia”, meti-a num molde de mulher sem braços (claro !) e quando a Polícia Inter-Estelar me inspeccionou o porão, disse que era uma estatueta de adorno; os tipos deixaram passar, a ela e aos outros que – estranhamente – continuam criogenizados”.
“Não é nada de espantar”, disse Funes, “claro que já anulei a ordem automática do meu computador, a partir de agora não vai des-criogenizar ninguém”.
“No problem, Funes, eu de qualquer maneira ia mesmo despertar a Nieves a curto prazo, pois estou a precisar de ajuda na manipulação dos comandos desta nave”.
(continua)
Contos Estelares - III
Os heróis espaciais continuaram a dialogar durante longo tempo.Cleópatra aceitou deixar de enviar remoques a 100anos. Marta resignou-se a que alguma das outras mulheres enviasse volta e meia um sarcasmo a João: afinal de contas, como Marta sabia muito bem, João pertencia ao sexo inferior, ainda mais inferior que Funes ou 100anos, pois não comandava uma nave e era um subalterno naquela em que estava.
Aliás, todas as mulheres encaravam Funes e 100anos como uma espécie de “quase-pares”, pois eram comandantes de naves, por isso gente poderosa, mas eram homens, por isso gente algo inferior.
As coisas no espaço estavam a acontecer – exactamente – à velocidade da luz.
Concordaram em colocar todas as naves numa órbita hiperbólica tendo por eixo uma linha recta imaginária entre o desaparecido sol e a Alfa de Centauro, sendo que a ideia era que cada nave varresse com scanners a sua área no sentido de os computadores detectarem planetas habitáveis para o ser humano.
Funes, que estava quase a mudar o seu nome de El Memorioso para El Misericordioso, concordou em facultar a todos os outros os arquivos do Matriarcado Terrestre da Sempiterna Superioridade Feminina, incluindo os próprios registos que ele, Funes, já havia feito nesses arquivos desde a partida da Terra.
Neves de Ontem foi encarregada de todos os sistemas da nave de 100anos, à excepção do sistema de navegação, o que deixou as mulheres algo perplexas – na verdade, se 100anos pensara acordar Neves do seu sono criogénico, seria a coisa mais natural tirar partido da sua superioridade natural feminina colocando-a à testa de todos os sistemas significativos da nave.
“Não quero, desculpem lá mas o sistema de navegação controlo eu”, insistia Cem, renitente, “sempre fui eu a guiar os meus caminhos e não é agora que vou mudar”.
“Compreendo-o” declarou Funes, “e tiro o meu chapéu à sua coragem em afrontar o matriarcado nesta situação – é de homem, caray !”
“Senhor Funes, tenha dó”, adiantou Cleópatra, “contemporizar com um disparate é uma coisa, manifestar concordância activa com ele, é demasiado descarado”.
As outras mulheres (Augusta, Marta, Neves) emitiram murmúrios de acordo.
“Bom”, obtemperou Augusta, conciliadora, “agora o que interessa é mantermos a nossa pequena comunidade activa e eficiente – não haveria nada mais lamentável do que deixarmos escapar algum planeta habitável enquanto estamos para aqui a discutir o sexo das anjas”.
Apesar do tom conciliador, ficou no ar a ideia de que o pobre Cem era helpless.
(continua)
Contos Estelares - IV
"Desculpar-me-á, Cleópatra, mas eu não disse que concordo com o Cem, limitei-me a registar admiração por uma atitude corajosa, embora - acrescento agora - totalmente inconsequente", disse Funes, sibilinamente.
"Homens, são todos iguais e só pensam numa coisa", respondeu irritadamente Cleópatra, acrescentando sotto voce "não fazem nenhum e só pensam em carcanhol, os inúteis".
Toda a gente educadamente ignorou a tirada cleopatraniana.
"Continuas-me a pisar os calos, mas há-de haver um dia de libertação" pensou Cem com os seus botões, mais concretamente com os seus fechos éclairs, dado que o seu uniforme não tinha botões."Homens, são todos iguais e só pensam numa coisa", respondeu irritadamente Cleópatra, acrescentando sotto voce "não fazem nenhum e só pensam em carcanhol, os inúteis".
Toda a gente educadamente ignorou a tirada cleopatraniana.
Por sugestão de Neves, todos anuíram a entrar em pseudo-sono profundo, ficando apenas ela acordada.
"Estou farta de dormir", explicou Neves, "já tive a minha conta, mas vocês estão cansados e desgastados; a minha sugestão é a de que toda a gente descanse enquanto for possível".
Antes, porém, foi necessário colocar em rede permanente todos os computadores, estabelecer sistemas de segurança automáticos para o despertar do pseudo-sono no caso de alguma coisa acontecer a Neves, corrigir trajectórias das naves mais excêntricas e programar os sensores para a detecção automática de sistemas habitáveis.
"E música ?", perguntou Cem.
"Música ?!", disseram várias vozes.
"Sim, música, amigos, é sabido que durante o sono o cérebro humano aceita estímulos; desde que esses estímulos sejam adequados, o sono só terá a ganhar em descanso e divertimento da pessoa em causa; eu, por exemplo, poderei programar o meu computador para me proporcionar música dos sixties, que é a que eu mais gosto, tipo Beatles, Stones, Hendrix, Neil Young, Eric Clapton".
Assim as futuras e os futuros Belas(os) Adormecidas(os) escolheram as suas músicas.
Augusta Nina escolheu entre outros Diana Kroll, Eric Clapton e muita música clássica.
João e Marta, jovens já nascidos na nave, escolheram música concreta.
Cleópatra escolheu algumas melodias em que avultavam as canções de um tal Frank Sinatra e pulou de fúria quando alguém disse "pimba, pimba" no intercomunicador, mas não se deu por achada; em surdina, optou ainda pelo Michael Bublé e pelo Rodrigo Leão.
Funes escolheu os clássicos.
Todos sabiam que aquele soninho iria durar várias décadas...
Fim do capítulo I
(continua)
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