Blog que trata dos livros, da leitura, da música e da reflexão política e social.


segunda-feira, fevereiro 19, 2007

Passarinho assassinado

Ao ler Saramago("As pequenas memórias"), hoje lembrei-me de uma história que aconteceu comigo há milhentos anos, que me ficou de emenda: O senhor meu Pai era caçador e chegou a apanhar caça grossa (não me refiro a senhoras, evidentemente, mas a caça mesmo...), um dia deixou-se tentar e comprou-me uma “Diana”, uma espingardita de pressão de ar, teria eu uns 13 ou 14 anos. Nesse Verão, em plenas férias, resolvi ir caçar, sem dizer a ninguém. Muni-me do chumbo necessário, de um cantil de água, de mais uma ou duas coisas, e ala que se faz tarde: fui-me emboscar ao pé de um regato onde os pássaros costumavam parar para se dessedentarem. Esperei, esperei, esperei. Lá apareceram uns quantos passarocos, mas a minha pontaria estava miserável. Cada tiro que atirava era uma revoada de pássaros a fugir e nenhuma “caça” ficava no chão. Até que consegui: fiz mira a um passarinho, firmei bem a alça da mira e trás, dei o tiro, acto contínuo o pássaro caiu morto à beira do regato com um tiro na cabecita. Exultei – estava quase a cair a noite e eu estava a ver que ia regressar de mãos a abanar. Depois, lá atei o pássaro à minha “cartucheira” e voltei para casa. Ao longo do caminho semi-montanhoso e depois já no povoado, o meu entusiasmo e alegria foram-se esboroando – não conseguia deixar de pensar no passarinho todo contente a debicar na água e na imagem seguinte – o pássaro morto, assassinado por um puto cujo único intuito era fazer tiro ao alvo; o desprazer da consciência de ter roubado uma vida à natureza foi-se apoderando de mim. Quando cheguei a casa ia triste como a noite, muitíssimo deprimido. Não disse nada ao meu Pai, corri a levar o cadáver do pássaro para sítio onde pudesse ficar em paz sem chamar atenções. Depois, acho que chorei um bocado. Sentia-me um assassino gratuito, estúpido, paranóico, uma besta que apenas por desporto tinha liquidado uma vida. Ficou-me de emenda. Não creio que tenha voltado a disparar a “Diana”. A imolação desnecessária daquele passaroco acabou por ser um marco importante para a formação do meu carácter, designadamente o meu respeito pela vida humana, animal ou vegetal.

2 comentários:

Cleopatra disse...

"Quando cheguei a casa ia triste como a noite, muitíssimo deprimido. Não disse nada ao meu Pai, corri a levar o cadáver do pássaro para sítio onde pudesse ficar em paz sem chamar atenções. Depois, acho que chorei um bocado. Sentia-me um assassino gratuito, estúpido, paranóico, uma besta que apenas por desporto tinha liquidado uma vida."

Mais palavras para quê?

100anos disse...

É curioso, deitei contas à vida e acho que nunca tinha contado esta estória a ninguém; há muito que me tinha esquecido dela; foi o livrito de Saramago, a falar de pássaros, regatos e natureza, que ma trouxe à superfície das meninges.

eXTReMe Tracker